(foto ilustrativa)
"Apareceu lá em casa o cachorro
mais feio do mundo.
Parecia um novelo esfiapado. Um pacote
de pulgas muito magricelo, trêmulo e estabanado.
Porém, algo naquele bicho me
comoveu.
Talvez seus olhos úmidos, as vastas
orelhas caídas ou a forma suplicante com a qual me olhava.
Fora muito maltratado. Fiquei
profundamente penalizado.
Ele era apenas um filhote e já
descobrira toda a crueldade do mundo.
No alto de meus dez anos de idade não
tive coragem de espantá-lo.
Eu sabia que meus pais jamais me
deixariam ter um cachorro, quanto mais um tão estropiado quanto àquele.
Prometi, então, entregá-lo ao canil da
prefeitura, onde eles recolhiam os cachorrinhos órfãos, até que alguém o
adotasse.
Porém ninguém adotaria aquilo.
O coitadinho mal parava em pé de tão
fraco. Talvez fosse pela fome. Talvez fosse pela doença. Talvez fosse por
ambos. Não podia entregá-lo à prefeitura naquele estado.
Depois de uma negociação com os
familiares, contando com o apoio de meus irmãos realizei uma operação de
emergência.
Ração especial, anti-pulgas e
vermífugos aos quilos.
Consegui a assistência de um primo que
estudava veterinária e em poucos dias o pobrezinho já conseguia sair da casinha,
um tanto trêmulo, para me fazer festa quando eu voltava da escola.
Meu vizinho, o “seu” Roby, que se dizia
estrangeiro, adorava fazer piadas políticas.
Logo, transformou meu cãozinho em seu
alvo predileto.
— E então, como vai o Brasil? Está se
recuperando? — Perguntou ele, numa manhã de domingo, quando me avistou
brincando com o cãozinho.
Seu quintal estava abarrotado de
parentes que se acotovelavam ao redor de uma churrasqueira fumacenta.
Todos esticaram seus pescoços por cima
da cerca.
— Como disse? — perguntei, enquanto
jogava uma bolinha para me amigo canino.
— Esse seu vira-lata, o nome dele é
Brasil, não é? – Insistiu o malvado enquanto mastigava um pedaço de pão com
linguiça.
A parentada do ilustre ao ver um cão
tão feio e raquítico rachou o bico de tanto rir.
Aquilo me pegou de surpresa. Ainda não
havia escolhido um nome pro bicho.
No fundo eu sabia que se eu o batizasse
eu me apegaria.
Olhei para o pobrezinho. Saltitava
borbulhando de alegria, indo e vindo com aquelas perninhas finas e a bolinha
amarela na boca.
Seus olhos estavam repletos de
felicidade.
Tinha alimento, abrigo e mais que tudo
um amigo para brincar.
Meu coração sofreu um aperto.
Ele ainda não tinha um nome.
Talvez eu tivesse vergonha da aparência daquele pobre animal?
No entanto, aquela magreza cadavérica,
aliada ao pelo falho e sem vida não o impediam de correr e se divertir e também
de aprender alguns truques.
Era o próprio retrato da vitalidade.
Completamente alheio à selvageria da vizinhança que fazia dele um objeto
repulsivo capaz de ofender toda uma nação.
Às vezes existe vantagem em se ser um
simples cachorro. Exime-se da triste tarefa de se destilar o teor destrutivo
das palavras.
Por isso respondi altivo àquela
provocação.
— É sim! O nome dele é Brasil. Por
quê?
— Esse seu cachorro acha bonito ser
feio, né?
Novas gargalhadas.
Os parentes esfomeados tinham se
transformando em plateia e agora se agarravam à cerca com olhar transbordando
expectativa.
— Olha só quem está falando de feiúra
Brasil, esse velhinho que cresceu do avesso – respondi com irreverência.
Para minha surpresa as risadas foram
ainda mais intensas.
“Seu” Roby se irritou com a virada da
torcida e por isso contra-atacou.
— Ele está abanando o rabo ou é o
rabo que está abanando ele?
Mais risadas.
— Pelo menos sabemos em que lado do
corpo ele tem o rabo .
Risadas e alguns gritos.
— O que ele come para ser assim tão
magro? Arame farpado?
Alguns risos forçados.
— Claro. Se ele comesse pão com
linguiça além de muito feio seria espinhento, pançudo e teria um bafo de
matar.
Muitas risadas e aplausos. Alguns
tiveram que se sentar para não caírem da cerca.
Eu tinha descoberto naquele momento, e
da pior forma, como um público pode ser traiçoeiro.
Assim resolvi sair de cena enquanto o
vento soprava ao meu favor.
Peguei Brasil em meus braços e me
refugiei dentro de casa.
Contei aquele episódio aos meus
pais.
Eles ficaram mais indignados que
eu.
Para a nossa sorte — minha e de Brasil
— conquistamos esses dois grandes aliados em nossa campanha de revitalização
nacional.
Em poucos meses Brasil estava belo,
forte e impávido. Um verdadeiro colosso.
A magreza fora substituída por uma
musculatura robusta e ágil.
O pelo acastanhado crescera vistoso e
brilhante e não eram poucos os que paravam no portão para elogiar aquela
metamorfose.
Além da beleza, Brasil demonstrava ser
muito esperto e aprendia com rapidez muitos truques.
Truques que eu usava para conquistar,
junto a meus pais, a permanência definitiva de Brasil em nossas vidas.
Seu Roby perdeu a graça para fazer
piadas.
Num dia me abordou na rua só para
perguntar qual fora o segredo daquela transformação.
Eu respondi na lata:
— Bastou o Brasil encontrar alguém que
o amasse de verdade."
Autor: Mustafá Ali Kanso é
escritor, professor, engenheiro químico, empresário da mídia educacional e
divulgador científico em programas culturais da TV e da Internet.
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