quinta-feira, 19 de novembro de 2015

REFLEXÃO: UMA QUESTÃO NACIONAL

(foto ilustrativa)

"Apareceu lá em casa o cachorro mais feio do mundo. 

Parecia um novelo esfiapado. Um pacote de pulgas muito magricelo, trêmulo e estabanado.  
Porém, algo naquele bicho me comoveu. 
Talvez seus olhos úmidos, as vastas orelhas caídas ou a forma suplicante com a qual me olhava. 
Fora muito maltratado. Fiquei profundamente penalizado. 
Ele era apenas um filhote e já descobrira toda a crueldade do mundo. 
No alto de meus dez anos de idade não tive coragem de espantá-lo. 
Eu sabia que meus pais jamais me deixariam ter um cachorro, quanto mais um tão estropiado quanto àquele. 
Prometi, então, entregá-lo ao canil da prefeitura, onde eles recolhiam os cachorrinhos órfãos, até que alguém o adotasse. 
Porém ninguém adotaria aquilo.  
O coitadinho mal parava em pé de tão fraco. Talvez fosse pela fome. Talvez fosse pela doença. Talvez fosse por ambos. Não podia entregá-lo à prefeitura naquele estado. 
Depois de uma negociação com os familiares, contando com o apoio de meus irmãos realizei uma operação de emergência. 
Ração especial, anti-pulgas e vermífugos aos quilos. 
Consegui a assistência de um primo que estudava veterinária e em poucos dias o pobrezinho já conseguia sair da casinha, um tanto trêmulo, para me fazer festa quando eu voltava da escola. 
Meu vizinho, o “seu” Roby, que se dizia estrangeiro, adorava fazer piadas políticas. 
Logo, transformou meu cãozinho em seu alvo predileto. 
— E então, como vai o Brasil? Está se recuperando?  — Perguntou ele, numa manhã de domingo, quando me avistou brincando com o cãozinho. 
Seu quintal estava abarrotado de parentes que se acotovelavam ao redor de uma churrasqueira fumacenta. 
Todos esticaram seus pescoços por cima da cerca. 
— Como disse? — perguntei, enquanto jogava uma bolinha para me amigo canino. 
— Esse seu vira-lata, o nome dele é Brasil, não é? – Insistiu o malvado enquanto mastigava um pedaço de pão com linguiça. 
A parentada do ilustre ao ver um cão tão feio e raquítico rachou o bico de tanto rir. 
Aquilo me pegou de surpresa. Ainda não havia escolhido um nome pro bicho. 
No fundo eu sabia que se eu o batizasse eu me apegaria. 
Olhei para o pobrezinho. Saltitava borbulhando de alegria, indo e vindo com aquelas perninhas finas e a bolinha amarela na boca.
 Seus olhos estavam repletos de felicidade. 
Tinha alimento, abrigo e mais que tudo um amigo para brincar. 
Meu coração sofreu um aperto. 
Ele ainda não tinha um nome.  Talvez eu tivesse vergonha da aparência daquele pobre animal? 
No entanto, aquela magreza cadavérica, aliada ao pelo falho e sem vida não o impediam de correr e se divertir e também de aprender alguns truques. 
Era o próprio retrato da vitalidade. Completamente alheio à selvageria da vizinhança que fazia dele um objeto repulsivo capaz de ofender toda uma nação. 
Às vezes existe vantagem em se ser um simples cachorro. Exime-se da triste tarefa de se destilar o teor destrutivo das palavras. 
Por isso respondi altivo àquela provocação. 
— É sim! O nome dele é Brasil. Por quê? 
— Esse seu cachorro acha bonito ser feio, né? 
Novas gargalhadas. 
Os parentes esfomeados tinham se transformando em plateia e agora se agarravam à cerca com olhar transbordando expectativa. 
— Olha só quem está falando de feiúra Brasil, esse velhinho que cresceu do avesso – respondi com irreverência. 
Para minha surpresa as risadas foram ainda mais intensas. 
“Seu” Roby se irritou com a virada da torcida e por isso contra-atacou. 
 — Ele está abanando o rabo ou é o rabo que está abanando ele? 
Mais risadas. 
— Pelo menos sabemos em que lado do corpo ele tem o rabo . 
Risadas e alguns gritos. 
— O que ele come para ser assim tão magro? Arame farpado? 
Alguns risos forçados. 
— Claro. Se ele comesse pão com linguiça além de muito feio seria espinhento, pançudo e teria um bafo de matar. 
Muitas risadas e aplausos. Alguns tiveram que se sentar para não caírem da cerca. 
Eu tinha descoberto naquele momento, e da pior forma, como um público pode ser traiçoeiro. 
Assim resolvi sair de cena enquanto o vento soprava ao meu favor. 
Peguei Brasil em meus braços e me refugiei dentro de casa. 
Contei aquele episódio aos meus pais. 
Eles ficaram mais indignados que eu. 
Para a nossa sorte — minha e de Brasil — conquistamos esses dois grandes aliados em nossa campanha de revitalização nacional. 
Em poucos meses Brasil estava belo, forte e impávido. Um verdadeiro colosso. 
A magreza fora substituída por uma musculatura robusta e ágil.  
O pelo acastanhado crescera vistoso e brilhante e não eram poucos os que paravam no portão para elogiar aquela metamorfose. 
Além da beleza, Brasil demonstrava ser muito esperto e aprendia com rapidez muitos truques.   
Truques que eu usava para conquistar, junto a meus pais, a permanência definitiva de Brasil em nossas vidas. 
Seu Roby perdeu a graça para fazer piadas. 
Num dia me abordou na rua só para perguntar qual fora o segredo daquela transformação. 
Eu respondi na lata: 
— Bastou o Brasil encontrar alguém que o amasse de verdade."



Autor: Mustafá Ali Kanso é escritor, professor, engenheiro químico, empresário da mídia educacional e divulgador científico em programas culturais da TV e da Internet.


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